domingo, 26 de agosto de 2012

Seu Honório


Conto de Mari-Nilva Maia da Silva

Ele era um senhor respeitoso que a cada dois dias vinha vender milho no povoado. Na segunda feira, ele passava lá por casa, cumprimentava mamãe com um “Dona Maria” bem grave, batia de leve o chicote nos quartos do burro e cavalgava devagar mas com rumo preciso e muito sério.  À tarde ele voltava com o pescoço mais mole e puxava com força o cabresto do burro, que se erguia com raiva imponente, e os dois desapareciam rapidamente detrás da serra. Na quarta...

era a mesma coisa, mas de manhã a carga era mais pesada, Seu Honório era mais solene e silencioso, e, de tarde, seu peito se aproximava dez centímetros mais das costas do burro, que com um puxãozinho de nada endurecia o pescoço e os olhos e desaparecia como um vulto detrás da serra. Na sexta, o dono tinha um tom muito austero, rude até, e dizia Bom Dia brigando. O burro ia amassado. De tarde, este vinha correndo como se fosse da polícia, espalhando fumaça a uns dois metros do nariz. No seu lombo, só se via um corpo mole errando de direita à esquerda. Esse duplo comportamento no mesmo dia alimentava o mistério que para mim era Seu Honório e o medo que tinha dele, que era o mesmo medo que tinha dos adultos corretos, que não riem nem mentem.  No domingo, os dois vinham muito limpos e cheirosos, Seu Honório com bigode aparado e queixo verde de barba recém tirada, os bolsos estufados de notas de dois, e o burro saltitante e sorridente. Eles iam à feira. A feira, como se sabe, terminava com bêbados que vinham não sei de onde, brigas e até morte. Toda tarde de feira, meu coração se acelerava no meu peito cada dia mais apertado, e minhas pernas tremiam com a espera da notícia de morte que sempre chegava às 5h. Um dia às 4h, mamãe se deu conta de que não tinha açúcar para o café que ela preparava com as visitas na sala e me mandou à quitanda. De longe percebi os camelôs desfazerem as barracas, meu horizonte se reduziu como um funil, tudo ficou de noite e senti uma imensa vontade de chorar. Do outro lado da rua, jazia um bêbado sobre a calçada, o famoso Damiãozinho, nome que só de ouvir me arrepiava, que diziam que cortava orelha de gente, mas minha curiosidade sobre aquela metamorfose do que não se permite rir no que causa riso era tamanha que deixei a água da mamãe ferver até acabar. Seu Honório, a pé e cambaleando, passa em frente a Damiãozinho, que se levanta vermelho e diz: - rapaz, o que é isso que tu vem peidar na minha frente. Pela primeira vez ouço uma frase inteira de Seu Honório: -Eu não peidei não, filho d’uma égua. –Peidou sim que eu senti. –Se eu quiser peidar eu peido que o cu é meu e a rua não é tua. Então Damiãozinho, puxou uma faca da barguilha, e disse: - tu quer morrer cabra ruim, aprende a respeitar cara de homem. Seu Honório, que era mais ágil, puxou o facão, riscou o chão duas vezes e disse: -Quero ver bêbado mandar em mim. Deu um salto no burro, que o esperava com o pé levantado. Lá na ponta de rua que era minha casa, mamãe viu apenas a fumaça e me disse que não tinha cheiro.         

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Mari-Nilva Maia da Silva 

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